terça-feira, 27 de novembro de 2007

Outubro

(foto: Convento do Desterro, Salvador, Bahia. Por Ruy Jobim Neto)

I

Os pássaros, em geral, têm um senso perfeito do seu vôo. Naquela manhã de outubro, um outubro exasperante, Irmã Cecília tensionava os dedos das mãos como se fosse implodir. Os músculos do braço direito, cobertos por pele muito alva, protegiam-na dos raios inclementes do Sol, da mesma forma que mantinham a religiosa em estado de alerta insuportável. Era preciso sair, olhar para os pequenos pássaros que pousam na fonte do claustro maior e se inspirar neles. As sandálias comprimiam os dedos menores, os pés miúdos sabiam completamente aquelas ladeiras da Cidade Alta, a ponto de cruzarem pequenas vielas repletas de olhares curiosos, trazendo consigo lascívia e solidão. "A Bahia de Todos os Santos surpreende, vosmecê muito bem sabe disso". Uma frase contida em missiva delicadamente guardada como se fosse a cadeado dentro do bolso jazia em seu hábito de clarissa, e Irmã Cecília da Piedade turvava em perguntas insondáveis. Sabia o que transportava.
Outubro na Cidade da Bahia era sempre povoado de leituras nos ofícios do Desterro, e as irmãs e as crianças menores percorriam os dias em aulas práticas de canto. As meninas órfãs, mesmo as negrinhas, todas arregalavam os olhinhos quando Irmã Cecília jogava sua bela voz em tons maiores aos corredores gélidos do Convento. Era lindo, aquilo.
A madre superiora, sóror Genoveva da Cruz, tinha na professora uma de suas mais queridas irmãs, uma jovem possivelmente nascida em Paraguaçu ou em alguma cercania do Recôncavo, pouco enfim se sabe sobre ela. Música e mistério. (...)

in DO CLAUSTRO.
por Ruy Jobim Neto

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